Este texto que você está lendo agora não deveria ser escrito por mim. Deveria ser da Gabi*. Um nome que dei a ela hoje, como uma espécie de homenagem, embora eu mesmo não saiba seu nome real – e infelizmente, não me lembre de ter sequer perguntado.
Era algo como 2017, voltando de um teatro na Santa Cecília, bem à noite, que eu e minha esposa encontramos uma mulher trans vivendo em situação de rua, muito magra, pouco vestida para aquele frio de julho, mas mesmo assim mantendo nos passos e na voz um brilho feminino arduamente conquistado.
Era Gabi.
Ela apareceu de seu abrigo improvisado para nos pedir água e alguns copos de macarrão instantâneo do supermercado ali perto. Compramos alguns, de sabores diferentes. A água era para poder esquentar a refeição. O fogo, ela ainda arranjaria.
A mulher agradeceu muito e nos disse que dividiria cada copo em dois com suas amigas. Então apontou para uma direção atrás de si.
Por trás de lonas escuras, suas silhuetas apareceram na luz fraca da rua. Eram muitas. Nem havíamos notado.
E por trás delas, imaginei que havia muitas mais. E atrás delas, mais outras. E atrás destas últimas, outras na República, e outras na Luz, e mais no Bom Retiro. Pessoas trans, travestis, homossexuais, bissexuais, queers… em São Paulo toda. No Rio, em Minas, no Sul, no Norte… e nunca havíamos notado.
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Brasília, outubro de 2023. Após a lei proposta em 2007 por Clodovil e reconhecida vitoriosa apenas em 2013 e 2017, a população LGBTQIA+ sofre mais um retrocesso: a Câmara volta a discutir pelo veto do casamento civil de pessoas do mesmo sexo.
Gabi não estava presente para protestar. Suas amigas também não. Muitos não-cisgêneros e não-héteros também não. Mas Erika estava.
Expulsa de casa aos 15 anos pelo pecado de ser quem era, viveu com as travestis de Francisco Morato e precisou se prostituir para viver. Retomou seu relacionamento com a mãe 6 anos depois, quando voltou para casa, prestou pedagogia e gerontologia na faculdade. Foi lá onde ingressou no movimento estudantil e na política.
Em 2020, Erika Hilton se tornou a primeira vereadora negra e transgênero em SP. Três anos depois, como deputada federal, mais uma vez estava com seu microfone aberto na plenária.
Erika precisou de fôlego para discursar lindamente a plenos pulmões, quase gritando, para defender o básico, o que deveria ser direito humano: a permissão de existir, de amar, de pertencer, e de não ser expulsa mais uma vez da sociedade civil, como muitas meninas e meninos ainda são.
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Erika estava presente em nome de Gabi e de outros milhões de cidadãos marginalizados, invisibilizados, segregados por sua identidade de gênero e orientação sexual. Mas desta vez, nós também estamos presentes.
Desde 2022, a Fome é a agência de comunicação oficial da maior Parada LGBTQIA+ do mundo. Em parceria com a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOLGBT-SP), a agência cuida da estratégia e posicionamento da marca da manifestação mais orgulhosa, alegre e forte em Sampa.
O tema de 2023 foi a invisibilidade da comunidade LGBT+ nas pautas de assistência social, resumido como “Queremos políticas sociais para LGBT+ por inteiro e não pela metade”. Uma questão que abarca a população LGBT+ de baixa renda em insegurança alimentar, em situação de rua e exclusão social. Confira o vídeo manifesto aqui!
Por aqui, criamos um comitê de diversidade para liderar discussões e brainstormings, entregar linguagens compartilhadas e melhor definidas, dando liberdade criativa para a Fome representar, com responsabilidade e muito orgulho, a maior Parada LGBT+ do mundo — que reuniu milhões de vozes, corpos, projetos e discursos lutando juntos em um fim de semana radiante de junho.
Mais do que uma manifestação anual, a Parada LGBT+ de São Paulo é uma enorme oportunidade para pôr em evidência assuntos extremamente importantes para a comunidade, mas que não ganham a devida atenção. Com nossa ajuda, esta edição conseguiu mobilizar governo, empresas e sociedade em busca de melhorias para quem mais precisa.
Gabi, faz tempo que nos vimos, mas espero que você e suas amigas tenham visto a Av. Paulista durante aquele fim de semana em junho. Não para pedir comida pra gente. Mas para nos ver lutando por muito mais por vocês.
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* Escolhi este nome em homenagem à peça teatral e livro chamados “Luiz Antônio Gabriela”: uma obra criada pelo autor como seu pedido de desculpas à irmã, mulher trans, vítima de toda sorte de violências e perseguições antes de sua redenção nos palcos – o que, infelizmente, não ocorreu em vida.